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A Política Racial e o Perfil Socioeconômico dos Conversos Brasileiros

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nordeste
O mormonismo chegou ao nordeste brasileiro em 1960. Naquela década, alcançaria boa parte das capitais da região. A política de discriminação racial da Igreja era um grande obstáculo à sua expansão, já que mais da metade da população nordestina, segundo o censo de 1950, era formada por negros e pardos, para quem o sacerdócio mórmon não era conferido. [1]

Os mais de três séculos de importação de escravos, aliados à natureza da colonização ibérica em nosso país, proveram uma intensa miscigenação entre portugueses, índios e africanos. As economias açucareira e mineradora absorveram uma grande quantidade de escravos trazidos da África, sobretudo em cidades como Recife, Salvador, Rio de Janeiro e partes de Minas Gerais.

Com o fim do tráfico negreiro, em 1850, a demanda por mão de obra nas lavouras de café estimulou a migração de europeus para o Sudeste. Descendo mais no mapa, o Sul, desde o início do século XIX, atraía a imigração de povoamento, incentivada pelo governo imperial; o que fez com que a população negra fosse menor nos três estados da região. O mormonismo brasileiro teria seu início por lá, e o alemão seria o idioma da Igreja Mórmon tupiniquim por 10 anos.[2]

Mórmons brasileiros de origem alemã, em Ipomeia, SC.

Mórmons brasileiros de origem alemã, em Ipomeia, SC.

A diferença entre as regiões quanto à presença de negros refletiu na escolha dos locais onde a Igreja concentraria seus esforços proselitistas, o que contribuiu para que o Nordeste ficasse de fora da empreitada missionária por mais de 30 anos.

Por razões históricas, no Nordeste, a distância entre ricos e pobres estava mais ligada à cor da pele que nas outras partes do Brasil onde o mormonismo havia se estabelecido, com a população de pele mais escura ocupando as camadas mais baixas do estrato social. [3]

Uma das coisas que preocupava os presidentes da Missão Brasileira na época era a grande quantidade de casamentos inter-raciais, algo que ia contra doutrina mórmon de então. Uma vez que essas uniões matrimoniais em que um dos cônjuges era de ascendência africana eram mais comuns nas classes mais baixas, os missionários, no Nordeste, concentravam seus esforços nas famílias de condição financeira mais privilegiada. Ainda havia o agravante do fato de, no Brasil, a classe social interferir na classificação racial: quanto mais dinheiro e tem, menos se é percebido como negro.

CIDADE BRANCOS PRETOS AMARELOS PARDOS S/DEC. DE COR POPULAÇÃO
ARACAJU 41,60% 17,48% 0,01% 40,66% 0,25% 68.364
TERESINA 25,25% 11,83% 0,00% 62,83% 0,09% 90.723
NATAL 49,95% 7,68% 0,00% 42,25% 0,12% 103.215
J. PESSOA 47,56% 11,77% 0,01% 40,49% 0,17% 119.326
S. LUIS 33,50% 13,10% 0,00% 53,15% 0,24% 119.785
FORTALEZA 44,41% 4,56% 0,00% 50,68% 0,35% 270.169
SALVADOR 33,48% 24,73% 0,01% 41,46% 0,32% 417.235
RECIFE 49,29% 10,05% 0,01% 40,32% 0,33% 524.682
MACEIÓ 45,53% 7,70% 0,01% 46,48% 0,29% 120.980

Censo Demográfico de 1950 (Amorim, 1986)

A consequência disso foi, conforme apontado por Mark L. Grover, que os conversos nordestinos nos primeiros 18 anos de pregação do mormonismo nessa região eram em menor número e tendiam a ser das classes economicamente mais favorecidas, se comparados com os conversos das outras partes do Brasil.

As restrições raciais fizeram os ramos no Nordeste serem diferentes dos do Sul (…) Com grande porcentagem de professores, médicos, advogados, e outros profissionais na Igreja, encontrar líderes leigos com experiência administrativa para preencher posições em ramos e distritos foi um problema a menos. [4]

Nádia Fernanda Maia de Amorim, com o seu Mórmons em Alagoas: Religião e Relações Raciais prestou um grande serviço aos Estudos Mórmons no Brasil ao contar um pouco da história do mormonismo em Maceió. Ela começou sua pesquisa antes dos negros poderem receber o sacerdócio, acompanhou a mudança na política racial da Igreja e pôde observar um pouco das consequências disso.

Querendo evitar as possíveis alterações no comportamento dos membros da igreja decorrentes da preocupação que estes apresentariam com o “sentir-se observado”, Amorim optou por não revelá-los o motivo que lhe levara a se aproximar do mormonismo. Segundo a alagoana, isso favoreceu à apreensão da visão de mundo do grupo, do seu comportamento real em que se manifestava; com a desvantagem de obrigatoriamente ter ela tido que guardar os dados na memória, uma vez que “não podia proceder ao registro na presença do observados”. [5]

De acordo com a pesquisadora, no início da Igreja em Alagoas, os missionários concentraram seus esforços nos bairros Farol e Pajuçara, onde se encontrava parte da população mais bem situada na escala econômico-social. Por diversas vezes, Amorim comenta sobre o proselitismo seletivo, no qual pessoas de ascendência africana eram evitadas por causa do constrangimento que a doutrina causava: “(…) as pessoas de cor são preteridas já a partir do trabalho de proselitismo. Mesmo que demonstrem simpatia pela igreja são relegados a um plano de esquecimento”. [6]

Um missionário assim aconselhou uma senhora mórmon sobre como esta deveria proceder na escolha das pessoas a quem apresentar a Igreja:

Tenha cuidado irmã, na escolha dos investigadores. Procure pessoas de boa aparência; limpas, bem cuidadas, que não tenha linhagem. Não é tão difícil perceber quando ela existe. Os traços, de uma forma geral a revelam. Não somente a cor. Pode ser o cabelo, os lábios, o nariz. É que não adianta trazer para igreja, agora, indivíduos dela portadores. Já que não podem ainda receber o sacerdócio, é melhor evitá-los. [7]

Tendo por base o estudo de Weber, Amorim encontra intercessões entre mormonismo e a Ética Protestante. Ela percebe, baseada em publicações da Igreja que tinha disponível e no comportamento dos próprios membros locais, a visão que tem “o êxito e o sucesso como indicadores de uma vida virtuosa”. E assim define o Espírito Mórmon:

Uma ética de vida profundamente marcada pelo utilitarismo apoiado em máximas que expressam os elementos essenciais- riqueza, poder, prestígio – do ideal perseguido: conquista do mundo mediante a eficácia dos esforços humanos com vistas à exaltação. [8]

Sobre os jovens da unidade que ela frequentou em algum momento do final dos anos 70 ou inicio dos 80:

Arquitetura, Medicina, Direito, Nutrição e Enfermagem são os cursos seguidos pelos membros jovens e universitários. Todos brancos, filhos de mórmons – três médicos, três advogados, dois professores, também bancários- todos oriundos da camada média da sociedade. [9]

Esse caráter elitista da membresia refletiu no prognóstico que um membro lançou na presença da pesquisadora:

(…) Esses jovens vão trazer muita gente pra Igreja. Os seus amigos também hão de querer conhecê-la. E não terão dificuldade em aceitá-la, porque verão que seus amigos são jovens saudáveis, alegres e bem sucedidos. [10]

O estudo de Nádia Amorim parou poucos anos após a revelação de Spencer W. Kimball. Ela aponta que, nos 12 anos que transcorreram da chegada dos primeiros missionários à Declaração Oficial 2, a Igreja só constituiu um ramo na capital alagoana. Seis meses após a revelação, já eram 3 as unidades.

Maceió se tornou distrito em setembro de 1979. A pesquisadora finalizou seu trabalho antes da criação da Estaca Maceió, ocorrida em 1982, sobre a qual ela já conhecia os planos.

Praça e shopping center no atual bairro Aldeota, em Fortaleza.

Praça e shopping center no atual bairro Aldeota, em Fortaleza.

Se sairmos do trabalho de Amorim e deslocarmos nossos olhos em direção aos primórdios da Igreja no Ceará, notamos uma dinâmica semelhante. O mormonismo chegou por aqui também em 1966. Assim como em Maceió, as investidas missionárias se deram em um bairro nobre da capital, Aldeota, onde seriam arrebanhados os primeiros conversos e onde se localizaria o primeiro ramo local.

No início dos anos 70, um norte-americano veio dar aulas na Universidade Federal do Ceará e assumiu a presidência do ramo. Agora, a congregação local passava a ter uma família selada no templo (ainda não havia esses edifícios no Brasil) e com experiência em liderança eclesiástica.

Por intermédio desse professor universitário e líder SUD, seu colega no departamento de alimentos da UFC foi batizado. Este seria chamado, oito anos depois, como conselheiro da primeira estaca da cidade, presidida por outro norte-americano, professor da mesma instituição que o primeiro presidente do ramo cearense.

A igreja demorou 11 anos para enviar seu primeiro missionário ao campo, que se deu em 1977. Até 1979, só existia um ramo no estado; com uma frequência que não chegava a 100, conforme me relatou um membro da época.

Segundo o registro da primeira estaca da capital cearense, criada em 1981, quase todos os bispos das alas que compunham a Estaca Fortaleza Brasil tinham apenas 1 ano de igreja. [11] Muitos dos líderes dessas unidades, incluindo bispos, seriam impossibilitados de exercer liderança, caso a política de segregação racial não houvesse sido banida. [12]

Embora a economia cearense não tenha usado tanto a mão de obra escrava como em outros estados nordestinos – fazendo com que o número de negros fosse relativamente pequeno e o estado fosse o pioneiro na libertação de seus escravos-,[13] nem de longe pode ser apontado que a política racial mórmon não tenha sido um empecilho no crescimento da Igreja no Ceará; sendo algo que não pode ser ignorado em futuros estudos sobre o tema.

É provável que o fim do alijamento do sacerdócio aos homens com algum antepassado africano permitiu aos missionários um menor receio de fazerem proselitismo nos bairros mais humildes, antes com a problemática de lá se encontrar uma maior quantidade de “descendentes de Caim”.

Sem o obstáculo da política racial e devido à maior receptividade aos missionários nos bairros mais simples, houve um crescimento exponencial de batismos no nosso país, nas décadas de 80 e 90; o que não apenas proporcionou a expansão da Igreja como alterou o perfil socioeconômico dos conversos, sobretudo os do Nordeste.

Escrevendo mais de 20 anos depois de Nádia, Clara Flaksman, apesar de ter como objeto de estudo uma congregação da Zona Sul do Rio de Janeiro, percebeu uma membresia de condições mais modesta que a alagoana.[14]

A despeito de não ter sido o foco do trabalho dissertar sobre a classe social dos membros do ramo que ela estudara, Flaksman observa que os frequentadores eram, segundo a expressão usada pela pesquisadora, “majoritariamente de classe baixa”. E antes disso menciona:

A grande maioria dos freqüentadores da Igreja do Jardim Botânico é de trabalhadores das redondezas. Há porteiros, empregadas domésticas, manicures, faxineiras. Muitos são da Comunidade Horto Florestal, localizada na fronteira do Jardim Botânico (não o bairro, mas o parque) com o Parque Nacional do Maciço da Tijuca; outros moram na Comunidade Parque da Cidade, na Gávea — duas comunidades pobres dentro de bairros ricos. Os membros da Igreja com renda familiar mais alta vêm de bairros distantes para ocupar algum posto que esteja vago — o bispo da Igreja do Jardim Botânico, por exemplo, é morador da Tijuca. [15]

Foto: lds.org.

Missionários estariam sendo instruídos a buscar brasileiros de classes sociais mais abastadas? (Foto: lds.org)

Recentemente, dois rapazes que serviram missão na mesma época, em diferentes partes do Brasil, me relataram um discurso de um membro da Presidência da Área Brasileira direcionado aos missionários de tempo integral. O que servia em Campinas transcreveu da seguinte forma um trecho do discurso:

Um chamado para servir é um chamado para crescer… A máquina da missão são vocês, lideres de Sião. Devemos sempre estar batizando, batizando bem e batizando sempre. Porém, devemos de forma urgente focalizar nos ricos. Não ter medo de falar do dízimo. Ter a coragem e a alegria de encará-los. A Igreja precisa de ricos neste momento de crescimento dela.

Nas lembranças do outro missionário, que na época servia em Belém, havia uma citação de Doutrina e Convênios sobre os “ricos e instruídos, com projeção de um slide em que aparecia uma casa luxuosa (que os missionários especularam ser de propriedade daquele líder). “Vocês teriam coragem de bater nesta porta”, foi a pergunta do setenta.

Deve ser levada em conta, obviamente, a possível diferença entre o que realmente foi falado pelo membro da Presidência da Área e as anotações dos dois jovens. Porém, mesmo havendo possíveis divergências, creio que não anularia a ideia de que a liderança tem se preocupado 1) com o menor interesse dos missionários SUD em levar sua mensagem aos “ricos e instruídos”, por descrença quanto ao sucesso; 2) em incentivar a busca por conversos com boas condições financeiras – que supostamente são mais estratégicos para o fortalecimento da Igreja, que repercutiria no crescimento institucional; 3) em fazer alguma alteração no perfil socioeconômico do converso mórmon brasileiro atual.

 

NOTAS

[1] Pardo é o termo usado para se referir a indivíduos com duas ou mais ascendências raciais. Sempre foi muito difícil apontar com certeza se a pessoa não apresentava africanos entre seus antepassados, mesmo para os que eram identificados como brancos. Os missionários eram aconselhados a observar fotos da família das pessoas a quem ensinavam, na procura por parentes com traços negroides. Visitas a familiares dessas pessoas também eram feitas para um melhor diagnóstico. Há relatos de que, em caso de persistir a dúvida, se fazia o uso da Benção Patriarcal: se o patriarca se sentisse inspirado a declarar que o membro pertencia a uma tribo de Israel, era sinal de que aquele indivíduo não era “descendente de Caim” e, portanto, poderia receber o sacerdócio. Às vezes, o patriarca declarava uma tribo israelita a pessoas com notória feição negroide, o que não foi visto com bons olhos por L. Tom Perry em sua visita ao país em 1976. [Mark L. Grover. "Religious Accommodation in the Land of Racial Democracy: Mormon Priesthood and Black Brazilians". Dialogue. 17 (Autumn,1984) p.32]

[2] DA SILVA, Rubens Lima. “Os Mórmons Em Santa Catarina: Orígens, Conflitos e Desenvolvimento. Master’s Thesis, UPM, 2008. p.87

[3],[4] GROVER, Mark L. “The Mormon Priesthood Revelation and the Sao Paulo, Brazil Temple”.Dialogue 23(Spring, 1990): p. 46

[5] AMORIM, Nádia Fernanda Maia de. “Os Mórmons em Alagoas: religião e relações raciais”. São Paulo, FFLCH/USP, Coleção Religião e Sociedade Brasileira, 1986. p.26

[6] Idem, p.101

[7] Idem, p. 105

[8] Idem, p. 96

[9],[10] Idem, p.127

[11] Aos 40s deste vídeo, aparece o texto que relata a criação da primeira estaca no Ceará.

[12] Curiosamente, quando Fortaleza passou a sediar uma missão, seu primeiro presidente foi o primeiro negro a ser chamado autoridade geral na história recente do mormonismo.

[13] GIRÃO, Raimundo. “História Econômica do Ceará”. Fortaleza, Editora Instituto do Ceará, 1947. p. 407

[14] Obviamente há falhas na comparação, já que Amorim estudou uma unidade nordestina, e Flaksmam, uma do Rio. Mas tendo em vista que Flaksman teve acesso à obra de Amorim, a diferença de constatação entre elas me chamou a atenção.

[15] FLAKSMAN, Clara Mariani. “Santos Dos Últimos Dias: Etnografia e Pesquisa Mórmon”. Master’s Thesis, UFRJ/Museu Nacional, 2007. P.19


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